O CASO DE FIDELINO DE FIGUEIREDO: um artigo de Renato Epifânio, Presidente do MIL, uma Associação PASC – Casa da Cidadania.

por Renato Epifânio (Este texto representa apenas o ponto de vista do autor, não da PASC – Casa da Cidadania, nem das Associações que a compõem).

No século XX, Fidelino de Figueiredo foi uma das personalidades que nos legou uma das mais relevantes obras, ao longo de mais de meia centúria; entre outros títulos:

O espirito historico: Introducção à Bibliotheca.- Noções preliminares (1910; 3º Edição de 1920); A critica litteraria como sciencia (1912; 3ª Edição de 1920); Historia da litteratura romantica portuguesa: 1825-1870 (1913); Portugal nas guerras europêas: subsidios para a comprehensão dum problema de politica contemporanea (1914); Historia da litteratura realista: 1871-1900 (1914); Antologia geral de literatura portuguesa: 1189-1900 (1917); Como dirigi a Bibliotheca Nacional: Fevereiro de 1918 a Fevereiro de 1919 (1919); Literatura contemporanea: O sr. Júlio Dantas (1919); Historia da litteratura classica (3 volumes, 1917-1922); Torre de Babel (1924); História de um ‘Vencido da Vida’ – sobre Oliveira Martins (1930); As duas Espanhas (1932); Problemas da ética do pensamento: o dever dos intelectuais (1935); Alguns elementos portugueses na obra de Lope de Vega (1938); Últimas aventuras (1941); A luta pela expressão: prolegómenos para uma Filosofia da Literatura (1944); Estudos de literatura (5 volumes, 1915-1951); Ainda a épica portuguesa: nótulas de auto-crítica (1952); Símbolos & mitos (1964); Paixão e ressurreição do homem (1967).

Foi, para além disso, alguém que estabeleceu pontes: não apenas entre diversas áreas da cultura (como a literatura, a história e filosofia), como ainda, em particular, entre as culturas portuguesa e brasileira. Como escreveu Cleonice Berardinelli, uma das suas mais insignes discípulas:

“Chegou ele [Fidelino de Figueiredo] a São Paulo em 1938, para assumir a cadeira de Literatura Portuguesa, precedido da fama de uma obra já realizada e de uma vida que se poderia dizer ‘pelo mundo em pedaços repartida’, perseguido por um regime político a que não podia submeter-se dada a forma como respeitava o homem e o direito à livre expressão […]. Sua imensa cultura, sua extraordinária sensibilidade, sua reflexão profunda foram-nos rasgando horizontes que desvendavam um novo mundo de conhecimentos em que podíamos penetrar por sua mão. Era este o segredo do nosso destemor em acompanhá-lo: a mão em que nos apoiávamos confiantes, mão de amigo, mão de pai. Porque nos adoptara como filhos”. (Cf. “Mestre dos Mestres”, in A Missão portuguesa, São Paulo, UNESP, 2003).

Não obstante tudo isso, a sua relevantíssima obra – em termos quantitativos e, sobretudo, qualitativos – permanece ainda pouco estudada, como se o seu nome continuasse a ser o de um autor maldito. Razões para tal? Se relermos o seu livro Problemas da ética do pensamento: o dever dos intelectuais (1935), podemos talvez encontrar a razão. Entre considerações sobre a “brutalidade reanimalizadora” dos germânicos (recordamos que estávamos na segunda metade da década de 30) e as “elites cultas e esgotadas” da restante Europa, escreve a certa altura, sobre a emergência de uma nova “Elite”:

“A filosofia alemã do século XIX, principalmente com as doutrinas irracionalistas mais modernas, deu a preparação doutrinária […]. Essa ‘Elite’, que se há-de destacar da turba, nada tem de comum com a velha aristocracia de sangue, exausta há séculos, nem com a plutocracia do século XIX […]. Tem de ser uma selecção dos melhores, biologicamente considerados, dos melhores que as normas científicas da eugenesia, da biotipologia e da orientação profissional ajudarão a destacar da massa cinzenta.”

Caso para concluir: em Portugal, de facto, nada se esquece; daí tantos autores (ainda) condenados ao “esquecimento”, como é o caso de Fidelino de Figueiredo.

SER E DEUS: um artigo de Renato Epifânio, Presidente do MIL, uma Associação PASC – Casa da Cidadania.

por Renato Epifânio (Este texto representa apenas o ponto de vista do autor, não da PASC – Casa da Cidadania, nem das Associações que a compõem).

c0b53-renato2bepifanioAo longo da história da cultura, a exigência de um mundo com sentido culminou classicamente na afirmação de “Deus”. Lembremo-nos, por exemplo, da célebre aposta de Pascal: por Deus ou contra Deus, pelo sentido ou pelo sem-sentido do mundo. Esse parece-nos ser, porém, um falso dilema. Mesmo quando nega “Deus” – mais exactamente, uma certa concepção de “Deus” –, o humano fá-lo não por renegar o sentido, mas, ao invés, por uma exigência – por mais equivocado que esteja – de sentido.

Não é nisso que crentes e ateus se afastam, se dividem, por mais que, à partida, pareça que o mundo para um crente – usemos as categorias clássicas, por mais que redutoras e até equívocas – faça mais sentido do que para um ateu. Para este, como também já foi amiúde assinalado ao longo da nossa história, há limites intransponíveis de sentido: a morte, por exemplo, em particular a morte de uma criança, será sempre um desses casos.

Mesmo para um ateu, porém, a vida, enquanto existe, não pode deixar de ser essa busca inquebrantável de sentido. E aqui regressamos a essa relação a nosso ver essencial entre ser e sentido. Ainda que por vezes da forma mais chã, mais prosaica ou até mais pervertida, toda a existência, tal como humanamente se realiza, rege-se por essa busca inquebrantável e insaciável de sentido. Esse é o verdadeiro “Deus” de todos os humanos, independentemente de o afirmarem ou o renegarem. Eis o que aqui menos importa. Havendo ou não havendo “Deus”, há sempre, ainda que de forma não consciente, busca de sentido.

Escusamos aqui de dar exemplos de como essa busca se dá, por vezes, muitas vezes, da forma mais chã, mais prosaica ou até mais pervertida: (quase) todos nós temos consciência disso. O que mais importa para nós salientar é a dinâmica, o ímpeto, a pulsão que subjaz a essa busca. E por isso terminamos como começámos: o ser em si mesmo é ilusório, o ser em si mesmo nada é; ele só é, ele só se consuma, na exacta medida em que adquire sentido. Esse sentido, por sua vez, absolutamente considerado, pode até ser ilusório – para o seu ser, porém, ele é toda a verdade, a absoluta, a única verdade: o que lhe dá real sentido.

VIVÊNCIA E MUNDIVIDÊNCIA: um artigo de Renato Epifânio, Presidente do MIL, uma Associação PASC – Casa da Cidadania.

por Renato Epifânio (Este texto representa apenas o ponto de vista do autor, não da PASC – Casa da Cidadania, nem das Associações que a compõem).

c0b53-renato2bepifanioConfrontam-se, na nossa visão, duas perspectivas por inteiro incompatíveis entre si. Na primeira, o ser humano cumpre-se sobretudo na sua animalidade e tudo aquilo que transcende esse plano mais natural – a língua e a cultura – não só nada acrescenta como será mesmo nocivo, dado que afirma diferenças onde elas à partida não existem.

Na segunda, que aqui defendemos, o ser humano cumpre-se na medida em que transcende a sua mera animalidade, ou seja, na medida em que se assume como ser falante e pensante, em suma, como ser essencialmente cultural.

A essa luz, emergem cumulativamente dois ideais de vida: no primeiro, o ser humano cumpre-se na mera existência, ou sobrevivência, como os restantes animais; no segundo, o ser humano cumpre-se sobretudo na medida em que contribui, activa e conscientemente, para a criação de uma “mundividência”, ou seja, tal como aqui a entendemos, de uma visão cultural, supra-natural – mas não “contra-natura” –, do mundo.

A esta luz, a existência de várias línguas e culturas será igualmente um enriquecimento do mundo. Porque a língua não é apenas, nesta perspectiva, uma funcionalidade comunicativa mas, sobretudo, fonte de sentido e fundamento do próprio pensar – na medida em que este, para se realizar, exige o desenvolvimento de uma linguagem – , a pluralidade das línguas será, à partida, garantia de mais sentido(s), de enriquecimento cultural do mundo.

Ao invés, um mundo com apenas uma única língua seria ainda um mundo de seres falantes e pensantes, mas culturalmente muito mais pobre, qualquer que fosse essa única língua. Nos dias de hoje, o inglês, o “inglês global” (globish), parece ameaçar assumir esse estatuto, mas só aparentemente. Na realidade, essa língua é usada apenas para a comunicação global, inter-cultural, e, a esse nível, cumpre essa função – a função comunicativa a que a língua, de todo, não se reduz.

Ao nível (superior) do pensamento – ao nível poiético –, porém, as línguas locais mantêm o seu lugar, mesmo numa época de massiva despoietização do mundo. Não importa. Basta haver um falante de uma língua para que essa língua permaneça viva, do mesmo modo que uma pátria se mantém com apenas um seu cultor. Estranhos tempos, estes – quanto mais comunicação parece haver, exponenciada pelo fenómeno das “redes sociais”, menos pensamento, menos poiesis, menos pátria há… Ao defendermos uma pátria, uma língua, é no fundo isso que defendemos: uma visão poiética do mundo. Um mundo com sentido, em suma.

QUATRO EIXOS PARA UMA NOVA ESTRATÉGIA NACIONAL: um artigo de Renato Epifânio, Presidente do MIL, uma Associação PASC – Casa da Cidadania.

Cidadania e Defesa_53_1 semestre 2015-3

Cidadania e Defesa_53_1 semestre 2015-2

in Boletim Informativo “Cidadania e Defesa”, nº 53, 1º Semestre de 2015, pp. 33-34.

Este texto representa apenas o ponto de vista do autor, não da PASC – Casa da Cidadania, nem das Associações que a compõem.

IMANÊNCIA E TRANSCENSÃO: um artigo de Renato Epifânio, Presidente do MIL, uma Associação PASC – Casa da Cidadania.

por Renato Epifânio (Este texto representa apenas o ponto de vista do autor, não da PASC – Casa da Cidadania, nem das Associações que a compõem).

c0b53-renato2bepifanioPor mais que sempre tenda para o crescimento e a reprodução, a natureza, em si própria, nunca se transcende. Há uma inércia que a sobredetermina: a inércia da imanência, a inércia da entropia, a inércia da mesmidade.

Por isso, à medida que subimos na escala dos seres, o grau de alteridade, de singularidade, cresce proporcionalmente, crescendo exponencialmente quando se chega ao grau da humanidade. Na natureza, os seres humanos são, por excelência, aqueles que se afirmam pela sua singularidade. Quanto mais humano, mais singular, quanto mais humano, menos indistinto.

Dito isto, enquanto ser também natural, o ser humano sente também em si a inércia da imanência, a inércia da entropia, a inércia da mesmidade. O que nos leva às mais diversas consequências, numa mais fina e funda consideração antropológica: desde logo, nos planos educacional, social e político.

No plano educacional, ou pedagógico, e contra as perspectivas mais hegemónicas na pós-modernidade, a visão que defendemos insiste na noção de esforço, de sacrifício. É preciso sempre um esforço, um sacrifício, para combater – e transcender – essa inércia da imanência, essa inércia da entropia, essa inércia da mesmidade. Qualquer modelo de ensino que não tenha isso em conta, está a nosso ver condenado ao fracasso, por mais que isso não seja apreensível no imediato.

Eis a tese que, a nosso ver, se deve estender aos planos social e político. Também aqui, é a cultura que pode e deve dar um sentido maior à existência de cada um. De outro modo, cada existência será apenas uma sobrevivência, por mais que materialmente faustosa. Também aqui ao contrário das perspectivas mais hegemónicas da pós-modernidade, que tendem a defender, de forma mais expressa ou subliminar, que o ser humano se realiza sobretudo no plano material, defendemos aqui que essa realização será sobretudo cultural.

Isso implica, desde logo, que cada um se reconheça numa determinada comunidade histórico-cultural e que contribua para o seu presente e o seu futuro. No nosso caso, isso implica reconhecermo-nos não apenas como cidadãos portugueses – mera condição social e política –, mas, mais fundamentalmente, como membros de uma comunidade histórico-cultural cuja pertença consciente e activa dá um sentido maior à nossa existência. Tanto mais porque, sob essa perspectiva mais funda e mais ampla, nós já não nos afirmaremos apenas como cidadãos portugueses. Afirmar-nos-emos, mais profunda, mais amplamente, como cidadãos lusófonos – a nossa forma de sermos cidadãos do mundo.

NATUREZA E CULTURA: um artigo de Renato Epifânio, Presidente do MIL, uma Associação PASC – Casa da Cidadania.

por Renato Epifânio (Este texto representa apenas o ponto de vista do autor, não da PASC – Casa da Cidadania, nem das Associações que a compõem).

c0b53-renato2bepifanioPartamos, uma vez mais, de uma definição clássica: “a cultura é tudo aquilo que excede a natureza”. Daí, desde logo, uma vez mais reafirmada, a irredutível excedência do ser humano em relação ao ser meramente natural. O humano excede o animal na exacta medida em que a cultura excede a natureza.

Não se confunda, contudo, excedência com oposição – equívoco, infelizmente, muito disseminado. O facto da cultura exceder a natureza não significa, de todo, que a cultura seja “contra-natura”. Bem pelo contrário: toda e qualquer cultura será tanto mais forte quanto mais se enraizar na própria natureza.

Decerto, esse é um equívoco em grande parte da responsabilidade da própria humanidade, que, por muitas vezes, demasiadas vezes, se afirmou na negação, na destruição. E por isso há quem chegue a suspirar por um mundo sem humanidade, como se a humanidade fosse necessariamente sinónima da destruição da natureza. Apesar de todos os exemplos que se poderão aduzir – e todos temos consciência de que há muitos –, essa inferência é, em si mesma, abusiva e absurda.

Reconhecendo que o humano é capaz do (muito) pior e do (muito) melhor – também aqui em relação aos animais –, no seu melhor a cultura é sempre um enriquecimento, substantivo, da natureza. E não falamos aqui, particularmente, do plano paisagístico – ainda que, também aqui, uma paisagem humanizada seja, a nosso ver, em geral, uma paisagem sempre mais rica do que uma paisagem apenas natural.

Falamos aqui, também, de como a convivência humana é, no plano cultural e civilizacional, irredutivelmente mais rica do que a convivência natural, no essencial regida pela “lei do mais forte”. Também aqui, todos os contra-exemplos que se poderão facilmente aduzir apenas confirmam a regra. Sim, a humanidade historicamente criou também sociedades cruéis para muitos dos seus membros, mas foi a mesma humanidade que criou as únicas formas de convivência que respeitam os direitos de todos os seus membros, as sociedades a que damos o nome de “civilizadas”.

Para além disso, insistimos uma vez mais, é através do pensamento, da linguagem, da cultura – nas suas mais diversas formas – que o mundo, a própria natureza, ganha real sentido. Também por isso, a cultura, excedendo a natureza, não é “contra-natura”, antes a completa. Um mundo sem humanidade seria por isso, reiteramos, um mundo substancialmente mais pobre. Ainda que por vezes para nada pareça servir, é o pensamento, a linguagem, a cultura – nas suas mais diversas formas – o diamante maior na natureza, do mundo, do próprio ser: o que lhe dá, nos dá, real sentido.

ANIMALIDADE E HUMANIDADE: um artigo de Renato Epifânio, Presidente do MIL, uma Associação PASC – Casa da Cidadania.

por Renato Epifânio (Este texto representa apenas o ponto de vista do autor, não da PASC – Casa da Cidadania, nem das Associações que a compõem).

c0b53-renato2bepifanioOs seres humanos são também, decerto, seres da natureza – em concreto, seres animais – mas são essencialmente mais do que isso. Essa diferença essencial consubstancia-se no pensamento e na forma como este se verbaliza: ou seja, na linguagem.

Contrapor aqui que os animais também comunicam entre si – usando também, nessa medida, uma linguagem – é, uma vez mais, não perceber que as diferenças são muito maiores do que as semelhanças. Decerto, os animais também comunicam entre si – usando também, nessa medida, uma linguagem –, mas os animais não pensam, pela menos da forma como humanamente se constitui o pensamento.

Ora, é essa a diferença essencial, a tese que não é infirmável por todas as excepções que se aduzam: decerto, há seres humanos que por incapacidade perpétua ou temporária, não pensam, no sentido forte do termo. Mas essas são apenas as excepções que, como todas as excepções, confirmam a regra.

Afirmamos, pois, sem qualquer pretensão de originalidade – em filosofia, a originalidade tende a ser inversamente proporcional à verdade (salvaguardas as devidas excepções que, também aqui, confirmam a regra) –, que o ser humano só é na exacta medida em que pensa e em que verbaliza o seu pensamento através da linguagem. Ora, é aqui que a questão do sentido entra realmente. Todo o pensamento, tal como humanamente o experienciamos, é, essencialmente, uma procura de sentido.

É no pensamento, com efeito, que o ser procura e encontra, pior ou melhor, em parte ou por inteiro, sentido. Se pensar é sempre pensar em algo – mesmo que esse algo seja o ser em geral, o não-ser ou até o próprio nada –, a motivação, mais expressa ou mais subliminar, mais consciente ou mais inconsciente, é sempre esta: que sentido tem “isto”? É, pois, no pensamento que essa tensão do ser para o sentido emerge com todo o vigor. É no pensamento que o ser se sente. É no pensamento que o ser vem a saber de si.

Daí, de resto, essa clássica imagem – bem presente, por exemplo, em Hegel – da humanidade como a “consciência do ser”. Porque, de facto, é no humano, no nosso pensamento, que todo o ser ganha verdadeira consciência de si, na medida em que se interroga sobre o seu ser e, mais fundamentalmente, sobre o seu sentido. Se a humanidade não existisse, o mundo, tal como o conhecemos, poderia até continuar a ter sentido. Apenas – subtil, abissal diferença – não o saberia, não teria consciência disso. É pois a humanidade que dá sentido – pelo menos, um sentido consciente –, ao mundo, à própria natureza. É pois na humanidade que a natureza realmente se consuma, se completa.

SER E SENTIDO: um artigo de Renato Epifânio, Presidente do MIL, uma Associação PASC – Casa da Cidadania.

por Renato Epifânio (Este texto representa apenas o ponto de vista do autor, não da PASC – Casa da Cidadania, nem das Associações que a compõem).

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Tal como nós o podemos apreender, todo o ser é tensão: tensão para o seu sentido. Por isso, já muitos filósofos afirmaram o que o ser em si mesmo é ilusório, que o ser em si mesmo nada é.

Todo o ser é, pois, ser-para. Ele só é, ele só se consuma, nesse seu “para”. Classicamente, esse “para” foi sendo classificado como a “verdade” – e mesmo no século XX o foi entre nós, pela mão, por exemplo, de José Marinho.

De forma mais prudente, preferimos o termo “sentido”. E por isso dizemos: o ser em si mesmo é ilusório, o ser em si mesmo nada é; ele só é, ele só se consuma, na exacta medida em que adquire sentido. Esse sentido, por sua vez, absolutamente considerado, pode até ser ilusório – para o seu ser, porém, ele é toda a verdade, a absoluta, a única verdade: o que lhe dá real sentido.

Sendo esta, a nosso ver, uma asserção verdadeira sobre o ser em geral, há que considerar as modalidades bem diversas através das quais essa asserção de verifica. Olhando para a natureza, há, desde logo, que reconhecer as diferenças – ora mais subtis, ora mais abissais – entre os diversos seres.

Começando pelo reino mineral, poderíamos ser tentados a dizer que, por exemplo, uma pedra é apenas uma pedra. Mas no reino mineral há processos de transformação análogos ao trânsito entre ser e sentido, ou entre potência e acto, para usar a célebre categorização de Aristóteles. Pensemos, apenas para dar um outro exemplo, na forma de constituição de um diamante. Um diamante será também, num certo sentido, apenas uma pedra. Mas, apesar de não ter consciência disso, é muito mais do que isso…

Já no reino vegetal, esse processo é bem mais apreensível. Ainda que das formas mais diversas, há sempre uma tensão: uma tensão para o crescimento, uma tensão para a multiplicação. Também aqui, uma árvore será apenas uma árvore. Mas só será árvore na medida em que cresce e se reproduz. É esse o sentido que, também aqui inconscientemente, a anima: a seiva da sua seiva. Enquanto vive, todo o ser vegetal é sempre já um movimento, uma dinâmica.

Esse movimento, essa dinâmica, é ainda mais evidente se ascendermos agora ao reino animal. Entre uma formiga e um elefante, as semelhanças são bem maiores do que as diferenças. Obviamente, há aqui graus diversos de auto-consciência. Prosseguindo no exemplo dado, apenas um exemplo, um elefante terá um grau de auto-consciência bem maior do que uma formiga. Em qualquer caso, e este é ponto, a sua diferença em relação ao ser humano é ainda bem maior, abissalmente maior. Daí o erro, o erro absoluto, daqueles que, ontem como hoje, ainda que hoje mais do que ontem, enveredam por visões ontologicamente igualitaristas. Os seres naturais já não são iguais entre si. Em relação a estes, ainda menos o são os seres humanos.

VAROUFAKE’S END: um artigo de Renato Epifânio, Presidente do MIL, uma Assocação PASC – Casa da Cidadania.

c0b53-renato2bepifanioA tarefa do Syriza era, decerto, bem mais do que hercúlea, mas, passados todos estes meses, não é menos certo que o Syriza cometeu todos os erros possíveis e imaginários para chegar à capitulação final.

Sendo a dívida grega ainda mais impagável do que a portuguesa, havia, à partida, dois caminhos possíveis: manter uma relação empática com os credores, na premissa de que “as dívidas são para gerir, não (realmente) para pagar”, ou afrontar os credores o mais possível.

O Syriza escolheu, legitimamente, o segundo caminho, mas de forma desastrada. Antes de mais, esse só poderia ser um caminho viável se o Syriza tivesse garantido apoios junto de outros Governos, desde logo de países do sul. Como manifestamente não conseguiu, não deveria sequer ter dado o primeiro passo nesse sentido. A menos, claro está, que estivesse disposto a dar o passo final de “saída da zona euro”.

Cheguei a pensar que esse seria o plano final, o único que daria sentido ao caminho trilhado nestes últimos meses. No momento da verdade, porém, o Syriza capitulou por completo, aceitando tudo o que até então disse recusar. Nunca nestes últimos anos houve, no espaço europeu, uma capitação tão estrondosa.

E que ninguém diga aqui que há opções inevitáveis. Mesmo com uma arma apontada à cabeça, uma pessoa pode sempre dizer que não (e muitas pessoas o fizeram ao longo da história). Com povos, decerto, a questão é bem mais complexa. Mas a “saída do euro” não significaria a morte do povo grego. Seria, com certeza, uma decisão com consequências mais gravosas no imediato, mas não seria, de todo, a morte do povo grego. Poderia até ser o passo necessário para uma real recuperação económica a médio-longo prazo.

Tendo escolhido manter-se na zona euro, esse cenário nem sequer se põe. Como já mil e um economistas denunciaram, a zona euro foi estruturalmente construída para agravar as desigualdades entre os países mais ricos e mais pobres. Até há algum tempo, ainda apareciam uns quantos “federalistas” a defender que essa lógica poderia e deveria ser contrariada por compensações financeiras inter-estaduais, como acontece nos Estados Unidos da América. Mas, hoje, já (quase) toda a gente percebeu que o federalismo europeu é uma farsa.

Em suma, o Syriza não deveria ter arrastado as negociações durante mais de seis meses, para mais conduzidas por um Ministro das Finanças errático, egomaníaco e megalómano. O referendo a que, no final, submeteu o povo grego revelou-se igualmente uma farsa: não se pode induzir o povo a votar não à austeridade quando se antecipa que se terá depois que a aceitar, em dose reforçada. Chegar às negociações decisivas já com os bancos fechados é, aí sim, negociar com nenhuma margem de manobra. Com tantos deuses gregos em que se inspirar na arte da negociação e do compromisso, custa ver, com efeito, como o Syriza cometeu todos estes trágicos erros.

A ARTE DE SER LUSÓFONO : um artigo de Renato Epifânio, Presidente do MIL, uma Associação PASC – Casa da Cidadania.

c0b53-renato2bepifanioNos 100 anos da Arte de Ser Português, de Teixeira de Pascoaes, propomos aqui a uma (re)leitura dos seus quatro primeiros capítulos. Assim, citaremos excertos desses quatro primeiros capítulos, que nos permitimos actualizar em prol do novo horizonte que, a nosso ver, se abre a Portugal no Século XXI: o da Convergência Lusófona.

Ser lusófono é também uma arte. Uma arte, porém, não apenas de alcance nacional, mas, sobretudo, trans-nacional. A condição lusófona, com efeito, não é compatível com a posição estritamente nacionalista.

O mestre que a ensinar aos seus alunos, trabalhará como se fora um escultor, modelando as almas juvenis para lhe imprimir os traços fisionómicos do ser lusófono. São eles que a destacam e lhe dão personalidade própria, a qual se projecta em lembrança no passado, e em esperança e desejo no futuro. E, em si, realiza, deste modo, aquela unidade da morte e da vida, do espírito e da matéria, que caracteriza o Ser.

O fim desta Arte é a renascença lusófona, tentada pela reintegração dos portugueses [e de todos os demais lusófonos] no carácter que por tradição e herança lhes pertence, para que eles ganhem uma nova actividade moral e social, subordinada a um objectivo comum superior. Em duas palavras: colocar a nossa Pátria [lusófona, não apenas portuguesa] ressurgida em frente do seu Destino.

As Descobertas foram o início da sua Obra. Desde então até hoje tem dormido. Desperta, saberá concluí-la… ou melhor, continuá-la, porque o definitivo não existe.

(…)

A Lusofonia é uma Pátria porque existe uma Língua Portuguesa, uma Arte, uma Literatura, uma História (incluindo a religiosa) – uma actividade moral; e, sobretudo, porque existe uma Língua e uma História.

A faculdade que tem um povo de criar uma forma verbal aos seus sentimentos e pensamentos, é o que melhor revela o seu poder de carácter.

Por isso, quanto mais palavras intraduzíveis tiver uma Língua, mais carácter demonstra o Povo que a falar. A nossa, por exemplo, é muito rica em palavras desta natureza, nas quais verdadeiramente se perscruta o seu génio inconfundível.

E é pelo estudo psicológico destes vocábulos, comparado com o estudo das nuances originais (de natureza sentimental e intelectual) descobertas nas Letras, na Arte, na Jurisprudência, no sentimento religioso de um Povo, que podemos definir a sua personalidade espiritual, e daí concluir para o seu destino social e humano.

Se a nossa alma, em seu trabalho de exteriorização verbal, se condensou em formas de som articulado, em palavras gráfica e sonicamente originais, também nas obras dos nossos escritores e artistas autênticos se nota uma instintiva compreensão da Vida, em perfeito acordo com o génio da Língua portuguesa.

Uma Pátria é também um ser vivo superior aos indivíduos que o constituem, marcando, além e acima deles, uma nova individualidade. Esta nova Individualidade representa consequentemente uma expressão da Vida superior à vida animal e humana.

A Pátria Lusófona é um ser espiritual que depende da vida individual dos lusófonos. Por outra: as vidas individuais e humanas dos lusófonos, sintetizadas, numa esfera transcendente, originam a Pátria Lusófona.

Temos de considerar a nossa Pátria como um ser espiritual, a quem devemos sacrificar a nossa vida animal e transitória.

(…)

Observando agora o processo por que os seres se perpetuam e progridem, vemos que os imperfeitos representam transições para os mais perfeitos. O perfeito alimenta-se do imperfeito. O superior vive do inferior.

A lei suprema da vida é, portanto, a lei do sacrifício das formas inferiores às superiores.

Até no mundo físico de revela e tem o nome de gravidade. O corpo menor é atraído pelo maior. Atrair é viver; ser atraído é morrer. O pequeno corpo atraído perde-se, morre no grande corpo que atrai…

Os seres não realizam em si o seu destino, mas naqueles a que sacrificam a sua existência.

O rio é a morte de muitas fontes e o mar é a morte de muitos rios; mas o rio no mar é mar. A consciência humana é também morte, o sacrifício de muitas vidas animais e vegetais inferiores a ela.

Assim o indivíduo sacrificado à Pátria fica também a ser Pátria.

Cumpriu a fonte o seu destino, tornando-se rio, e o rio, tornando-se mar e o indivíduo tornando-se Família, Pátria, Humanidade, subindo da sua natureza individual e animal à perfeita natureza do Espírito.

Nuno Álvares, por exemplo, morreu como homem para viver como Portugal. Do mesmo modo, Portugal e as demais nações e regiões lusófonas devem sacrificar-se em prol da Pátria Lusófona.

Como prefigurou Agostinho da Silva, ao falar de um “Império, que só poderá surgir quando Portugal, sacrificando-se como Nação, ape­nas fôr um dos elementos de uma comunidade de língua portuguesa”. Na sua perspectiva, assim se cumpriria essa Comunidade Lusófona, a futura “Pátria de todos nós”: “Do rectângulo da Europa passámos para algo totalmente diferente. Agora, Portugal é todo o território de língua portuguesa. Os brasileiros pode­rão chamar-lhe Brasil e os moçambicanos poderão chamar-lhe Moçambique. É uma Pátria estendida a todos os homens, aquilo que Fernando Pessoa julgou ser a sua Pátria: a língua portuguesa. Agora, é essa a Pátria de todos nós.” Conforme afirmou ainda: “Fernando Pessoa dizia ´a minha Pátria é a língua portuguesa’. Um dia seremos todos — portugueses, brasileiros, angolanos, moçambicanos, guineenses e todos os mais — a dizer que a nossa Pátria é a língua portuguesa.”