Discurso de Miguel Duarte na entrega do prémio Ângelo d’Almeida Ribeiro

Miguel-Duarte

O Conselho Geral da Ordem dos Advogados deliberou, sob proposta da Comissão dos Direitos Humanos, Questões Sociais e do Ambiente, atribuir o “Prémio Angelo d’Almeida Ribeiro” 2019, ao activista pela defesa dos direitos dos refugiados, Miguel Castilho Soares Duarte. Pelo interesse do seu conteúdo, aqui fica o discurso de posse do premiado:

“Agradeço à Ordem dos Advogados esta distinção que me dirigiram e agradeço sobretudo o valor que dão à causa a que me dedico. Devo confessar no entanto que não considero que eu mesmo, individualmente, mereça qualquer prémio.

Tudo aquilo que fiz pelos direitos das pessoas que atravessam fronteiras à procura de uma vida melhor foi invariavelmente um esforço colectivo de centenas, senão milhares de pessoas que viram nos direitos dos outros, os seus próprios, no sofrimento dos outros, o seu próprio e nas famílias dos outros, as suas. Quanto ao acto muito concreto de impedir que uma pessoa se afogue, não acredito que haja uma única pessoa nesta sala que não tivesse feito o mesmo.

Quis apenas o acaso que eu, juntamente com 9 companheiros, nos víssemos alvo de uma investigação criminal por parte das autoridades italianas. Sendo essa mesma investigação, uma evidente instrumentalização dos meios judiciais para levar a cabo um objectivo político, coube-nos apenas aquilo que cabe a alguém que viu suceder algo horrível, ultrajante e descabido. Coube-nos contar a história. E foi isso que fiz, com os meus companheiros do colectivo Humans Before Borders. Por esta razão quero mudar o foco para quem realmente o merece.

O ano de 2019 ainda não acabou e já perderam a vida 1235 pessoas no mar Mediterrâneo desde Janeiro. No ano passado mais de 2000, no ano anterior mais de 3000 e em 2016 mais de 5000.

Perante um tragédia com estas proporções, os estados europeus decidiram não só encolher os ombros e virar a cara para o outro lado, mas também criminalizar as poucas organizações da sociedade civil que tentaram dar uma resposta, ainda que insuficiente, a esta catástrofe. Assim, os estados europeus violam leis internacionais, senso comum, e os princípios morais mais básicos.

Enquanto debatemos estas questões há jovens a apodrecer em prisões gregas e italianas porque, como vinham ao leme, foram identificados pela polícia como traficantes. São estes os verdadeiros heróis. Atravessaram um deserto, foram torturados numa prisão Líbia, deram tudo o que tinham por um lugar num barco mal construído e, uma vez chegados ao outro lado, foram recebidos com penas de prisão.

Vi com os meus próprios olhos um homem nigeriano atirar-se às águas revoltas do mar nocturno em busca de coletes salva-vidas que pudesse distribuir a quem já estava dentro de água sem saber nadar. A este homem, a este herói cujo nome nunca descobri, terá sido atribuído o prémio de meses a fio num centro de detenção, seguidos muito provavelmente pela condenação a uma vida de clandestinidade.

A crise não acabou. As pessoas não pararam de morrer. Limitaram-se a fazê-lo para lá das nossas fronteiras, em autênticos campos de concentração financiados pela União Europeia onde são torturadas, violadas, vendidas como escravas e obrigadas a servir de carne para canhão numa guerra civil despoletada pela NATO. Enquanto não houver canais legais de migração, continuará a haver tráfico humano, enquanto não se puder pedir asilo sem pisar solo europeu, as pessoas continuarão a arriscar a travessia.

Esta, juntamente com as alterações climáticas, será a grande crise da nossa geração. Cabe a cada um de nós decidir que história queremos contar aos nossos netos quando nos perguntarem porque deixámos morrer 18 000 pessoas em 6 anos: que não lutámos porque não era problema nosso, ou que fizemos o melhor que sabíamos por uma sociedade justa, igualitária e solidária”.

Obrigado

Miguel Duarte

Lisboa, 9 de Dezembro de 2019

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