A Ordem da Informação e os Direitos dos Humanos

Matos Pereira José Matos Pereira

1 – No começo da nacionalidade, a ordem da informação era inteiramente controlada pela Igreja. A título de exemplo, a informação oral era difundida no púlpito e controlada no confessionário, desvios de opinião e heresias eram perseguidos, o ensino e a universidade eram monopólio da Igreja, a língua culta era o latim, a cópia e conservação da informação escrita, em manuscritos, era feita nos conventos, e a classe que dispunha da informação era o clero.

2 – No tempo de D. Dinis, a língua portuguesa substituiu o latim e passou a ser usada nos documentos oficiais, D. Fernando e D. João I já tinham arquivos reais próprios na Torre do Tombo e chanceleres laicos, como Álvaro Pais e João da Regras e D. João III, ao conseguir do Papa a criação da Inquisição, colocou-a sob controlo real, nomeando o seu irmão, Cardeal D. Henrique, legado do Papa, Inquisidor Geral, depois regente e Rei. Os inquisidores tinham “bula para ler escritos ímpios” e fixar o Index dos livros proibidos.

3 – Filipe I nomeou Vice-Rei e Inquisidor Geral o Cardeal Arquiduque Alberto e, depois da Restauração, o controlo da ordem da informação através da inquisição foi sempre dominada pelo poder real. No tempo do Marquês de Pombal, o inquisidor Geral era um Cardeal irmão do Rei e a ordem da informação era controlada pelo poder real absoluto.

4 – O Iluminismo trouxe alguma liberdade de informação para as Academias, aliviando a rigidez dos controlos religiosos e dos poderes reais absolutos que já se interessavam bastante por tecnologias de interesses militar e marítimo e a Revolução Francesa trouxe novos paradigmas para a ordem da informação, que vigorou nos séculos XIX e XX, formulada, na época napoleónica, pelo reformador da Universidade Humboldt de Berlim.

5 – Segundo Willelm von Humboldt, a Ciência não podia ser objeto de qualquer censura por poderes políticos ou religiosos, a informação científica era pertença comum da humanidade, devia poder ser refutada e comprovada por experiências de terceiros, enquanto a Tecnologia, que era a aplicação prática das descobertas científicas ou de invenções a novos produtos e serviços, devia ser objeto de propriedade privada, protegida nacional e internacionalmente pelos estados, através de patentes, fator importante para a inovação e para o progresso económico.

6 – As criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, em que, em vez da informação objetiva, predominavam interpretações subjetivas de autores, a poesia, o romance, a tragédia, a comédia, a música, a ópera, a simulação, a emoção, a opinião e as ideias, deviam ter regulamentação diferente. Com um largo consenso europeu, desenvolveram-se convenções e leis nacionais de proteção de direitos de autor para recompensar a sua criação, mas a sua liberdade de expressão e de circulação eram controladas por normas jurídicas, morais, de decência e outras, com censura, ou sem censura, pelos poderes liberais ou autocráticos.

6- Paralelamente ao sistema de Convenções Internacionais a que obedece o nosso Código de Direitos de Autor e Conexos, garantindo direitos morais e materiais ou pecuniários até 70 anos após a morte do autor, ou do criador de direitos conexos, data em que passam ao domínio público, o Copyright, ou direito de cópia, é o modelo de outros países como os EUA, que regula o direito de cópia detido pelo produtor ou detentor de todos os direitos.

7- Após o advento da internet, foi criado um sistema alternativo de Creative Commons, em que o autor abdica, em geral, de direitos materiais de reprodução, mas exige que a citação respeite a fonte e a integridade do conteúdo.

8- As diversas tecnologias que deram origem a modelos de educação em massa, de organização, a lugares de reunião, ou de espetáculo, museus, imprensa, imagens, telégrafo, telefone, rádio, televisão, redes públicas e privadas de comunicações eram controladas diretamente ou indiretamente pelos estados, até à liberalização e ultrapassagem de todas elas pela internet e seus derivados.

9- Deve ser lançado um debate e ouvir opiniões sobre o impacte sobre os direitos dos humanos, expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, documento fundamental da ONU, de 1948, que comemora 70 anos, e sobre a questão de saber se já estamos numa nova Ordem da Informação, ou se ainda estamos no prolongamento da Ordem da Informação que vigorou nos séculos XIX e XX, formulada na época napoleónica pelo reformador da Universidade Humboldt de Berlim.

10- Há sinais recentes de uma grande aceleração nas mudanças de paradigma. Uma delas é a discussão no Parlamento Europeu do projeto de regulamentação de direitos de autor e da potencial atribuição, no ex-Artº 13, atual 17º, às plataformas e redes sociais mais ricas e poderosas, de poderes/deveres de censurar conteúdos em potencial violação de direitos de autor,

11- Outra, é a incorporação no Código da Propriedade Industrial da proteção ao segredo comercial, sem limite de prazo e com processo administrativo e judicial secreto, e não sujeito a registo prévio que, até agora, garantia apenas patentes, por 10 anos, modelos, marcas, denominações e outros direitos sujeitos a registo,

12- Outra, é o facto de os dados pessoais serem regulados pelo Regulamento Geral da Proteção de Dados europeu com aplicação potencial universal a todos os que tenham qualquer ligação ao espaço europeu, mas a aplicação e execução da proteção depender de leis e órgãos nacionais, enquanto, na prática, depende de relações contratuais entre os utilizadores e as empresas que, pela superioridade tecnológica, dispõem dos big data de dados pessoais dos grandes ficheiros estatais, das atividades económicas, dos múltiplos sensores e máquinas e pela entrega voluntária dos seus titulares.

13- Outra, é o facto de a ordem da informação ser regulada hoje, mais por autorregulação de empresas que se propõem “organizar e disponibilizar a informação mundial” ou “pôr em contacto todas as pessoas do mundo”, quer por normas técnicas , quer por algoritmos próprios, sujeitos a segredo comercial, quer por códigos de conduta e regras de ética empresarial, sustentabilidade, privacidade próprias e alteráveis livremente, do que por leis estatais e supra estatais.

14- O domínio das tecnologias da informação ultrapassou o domínio do território, que era o sinal de soberania e de aplicabilidade do direito estatal. Pode-se dizer que só a Google, a Microsoft, o Facebook, a Cisco, a Amazon, a Apple e outras detentoras de redes e plataformas têm tecnologia e modelos de exploração da informação mundial e, além disso, “têm bula para ler os escritos ímpios”, como se dizia até as igrejas perderem o monopólio do que podemos ler.

15- A Internet of Things, a Inteligência Artificial, a Machine learning, a Computação Quantica, a Cloud Computing, a robótica, a nanotecnologia, as redes 5G, sensores e detetores de todos os tipos, Near field, Big Data, realidade virtual e aumentada, blockchain, etc., etc., alteram todos os paradigmas anteriores. A título de exemplo, a blockchain trata a informação pessoal distribuída por todos os intervenientes do processo, e impede o apagamento ou esquecimento de dados pessoais, esquecimento que o Regulamento Geral de Proteção de Dados Europeu garante.

16- Hoje, mantém-se a ficção de a informação científica ser património da humanidade mas, antes de a informação científica entrar no domínio público da humanidade, as suas aplicações tecnológicas são protegidas por registos de patentes por 10 anos, ou objeto de segredos militares ou comerciais de utilização exclusiva, sem prazo, pelo que quase nada na ciência é realmente domínio público.

17 – Humboldt não conhecia a internet nem o ciberespaço. A questão de o ciberespaço ser património comum da humanidade ou ser disputado pelas soberanias é a grande questão atual. Presume-se que os estados querem, mas não controlam sequer a www, quanto mais os 7 ou oito níveis da deep web e dark web, que só quem tem tecnologia e credenciais de acesso pode frequentar no caso da deep web e, tecnologias de ponta na dark web, em que a informação é anonimizada, cifrada e usada muitas vezes para fins suspeitos. Há apenas notícias do policiamento pela TALOS, do grupo Cisco, que anula 20 mil milhões de “ameaças” por dia e pelas instituições de intelligence americanas, russas, chinesas e algumas outras, que realmente dominam de facto a Ordem da Informação.

18- Ora, o Parlamento Europeu pretende, com o Artº 17º, atribuir poderes/deveres de censura sobre conteúdos sujeitos a direitos de autor apenas às mais ricas e poderosas plataformas e redes que têm tecnologia para o fazer e cujos algoritmos e revisores de conteúdos ou censores, quer de IA, quer humanos, já o fazem a seu bel prazer, alterando e ajustando o que mostram a cada um, segundo o que os sistemas periciais de IA aprendem sobre os interesses dos destinatários. 20.000 milhões de mensagens/ameaças/dia nunca chegam até nós, e ainda bem. A muito pequena parte de mails que a Talos, a Google, a Microsoft e outras deixam chegar à nossa caixa de correio, assinalada como spam e com conteúdo parcialmente oculto, por suspeita de ser perigoso, já é a norma de facto da sociedade atual.

19 – O Artº 17º do projeto europeu é a entrega legal dos poderes públicos de revisão de conteúdos, ou censura, aos mais poderosos poderes privados, que deles não precisam, e que complicam (?) burocraticamente os seus processos e imagem, quando, de facto, já tinham poderes discricionários que lhes permitem determinar o que cada um pode ver.

20 – As empresas têm agora menos interesse em registar patentes válidas por 10 anos, publicando, nos registos, dados que talvez não lhes convenha divulgar, pois podem invocar o segredo comercial (e militar nos casos em que promove e financia os projetos) para impedir outros de explorarem nichos de mercado, com a segurança de o discutirem em processos administrativos e judiciais secretos. Quem regista dezenas de milhar de patentes e tem recursos financeiros e advogados especialistas, pode bloquear qualquer start up, sem recursos, com o pretexto de estar a violar uma patente, mas agora, basta invocar um segredo comercial. A inovação pode ser posta em causa.

21- A proteção de dados pessoais, ou privacidade, protegida por segredos profissionais em mais de 2 dezenas de ordens profissionais, e por segredos bancários, administrativos, em muitos serviços do estados, rompeu-se, quer porque grandes bases de dados, por exemplo, de impostos e e-fatura, espelham tudo, quer porque os detentores dos dados dependem de fornecedores de hardware, software, comunicações e outros serviços externos, quer por externalização de bases de dados, quer por políticas de open data, de reutilização de informação em poder do estado, bem como pelo depósito da informação em clouds administradas por redes e plataformas multinacionais.

22- Acresce que, por exemplo, o segredo bancário, até há anos quase sacrossanto, é agora objeto de restrições, com pretextos de luta antiterrorista, contra a corrupção, ou fuga aos impostos, mas, ao mesmo tempo, amplia-se a proteção do segredo comercial que cobre bem as perdas do segredo bancário.

23- Os estados querem regular as redes, mas, em geral, não têm tecnologia e as detentoras de plataformas e redes, que a têm, podem negociar os impostos e contrapartidas mais favoráveis para os espaços soberanos onde colocam as “nuvens”. O Plano de Ação da ISOC Internet Society para 2019 levanta muitos desses problemas, mas o Internet Governance Forum, plataforma alargada de discussão de modelos a adotar, está longe de formular uma nova Ordem da Informação.

24- Por outro lado, o direito (internacional, regional e nacional), cada vez regula menos, pois as normas técnicas criadas por associações ou corporações de direito privado, ISO, International Standards Organization e IEC, International Eletrotechnical Commission, ambas de direito suíço, a CEN, Comission Europeénne de Normalization e a CENELEC, Comission Europeénne de Normalization Electronic, ambas de direito belga, o ETSI, European Telecommunications Standards Institute, de direito francês, o IEEE, Institute of Electric and Electronic Engineers, o IETF, Internet Engineering Task Force, a W3C, World Wide Web Corporation, as 3 de direito privado americano, etc., dominam e as leis estaduais reenviam para essas normas a regulação efetiva dos processos, dando-lhes carta branca para substituírem o conteúdo regulatório com novas versões, a seu bel prazer. O conceito de “Code is law” que poderíamos traduzir por “O software é a lei ou o direito” ilustra a atual relação dos modelos normativos. Estes e muitos outros problemas, embora com dimensões e importâncias diferentes, estarão em discussão um pouco por toda a parte.

25- A própria Teoria Geral da Relação Jurídica está em causa, de forma acelerada. Os elementos clássicos da Relação Jurídica eram o Sujeito, o Objeto, o Facto e a Garantia. No século XIX ainda se discutia se um escravo era uma coisa ou um sujeito de direito, se uma mulher casada era um sujeito de direito ou era, em muitos casos, equiparada a uma propriedade do marido. Sociedades, associações, fundações, cooperaitvas, mutualidades, agrupamento complementares de empresas, holdings, empresas públicas, fundos de pensões e outras pessoas coletivas deixaram de ser unicamente objetos de relação jurídica e adquiriram o estatuto de sujeitos de direito.

26- Hoje os animais deixaram de ser coisas e passaram a ser serescientes e discute-se se um drone, aéreo ou submergido, ou um automóvel sem condutor, um robô, ou um agente ou contrato inteligente, que compra e vende ações ou mercadorias na net, ou um smartphone de última geração que exporta, constantemente, dados sobre o nosso corpo e sobre o nosso comportamento e estados de alma, preocupações, likes e coockies para bases de dados externas, ou um influenciador digital, ou um assistente digital, seja ele a Siri, a Cortana, a Alexa, que realizam consultas e contratos em nome do assistido, serão apenas coisas, ou serão sujeitos jurídicos. A responsabilidade civil, a administrativa e a criminal terão de ser revistas. O conceito de facto ou de garantia também estão em profunda revisão. E os Direitos Humanos, que ainda estão longe de serem observados em muitos lugares do mundo, enfrentam agora ainda mais ameaças de origem anónima.

27 – Estaremos realmente numa nova Ordem da Informação? Como se caracteriza? Que tipo de sistemas normativos, desde a ética às normas técnicas, aos algoritmos, como se articulam sistemas normativos diferentes e complexos, privados, públicos, nacionais e internacionais? Se a Inteligência Artificial ultrapassar a Inteligência Humana, o que alguns estimam acontecerá entre 2029 e 2100, no ponto que se designa por “singularidade”, a Ordem da Informação, atual e futura, estará em condições de garantir direitos ou condições de vida digna aos Humanos?

Este texto é da exclusiva responsabilidade do seu autor e não compromete em nada a perspetiva da PASC – Casa da Cidadania ou os seus associados

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