por António Saraiva (Este texto representa apenas o ponto de vista do autor, não da PASC, nem das associações que a compõem).
Em primeiro lugar, o programa subestimou claramente os efeitos recessivos da consolidação orçamental sobre a procura interna e o impacto da recessão nas receitas fiscais e nas prestações sociais.
Em segundo lugar, as necessidades de financiamento da economia foram também subestimadas, o que levou a uma enorme
escassez de crédito que sufocou a generalidade das empresas, sobretudo as PME.
Assim, logo desde o início do programa, em 2011, as metas muito exigentes relativas à correção do défice público começaram a revelar-se de difícil, ou até de impossível alcance, mesmo com o cumprimento escrupuloso das medidas acordadas, exigindo a tomada de novas e sucessivas medidas adicionais de consolidação orçamental.
Este crescendo de austeridade, bem como a escassez de financiamento, tiveram como consequência uma
contração da procura interna mais profunda do que previsto inicialmente.
As dificuldades de execução orçamental do lado da receita fiscal, bem como a deterioração do cenário macroeconómico, refletiram-se depois num aumento brutal do esforço de consolidação em 2013, apesar da meta fixada para o défice público ter sido revista de 3% para 4.5% do PIB.
Além disso, num curto espaço de tempo, a estratégia de consolidação alterou-se radicalmente no que respeita à contribuição relativa das medidas do lado da despesa e da receita, afastando-se largamente do princípio inicialmente estabelecido no
Programa de Ajustamento, segundo o qual dois terços do esforço de consolidação orçamental deveriam assentar em medidas do lado da despesa.
Adiou-se, assim, a imprescindível tomada de medidas estruturais do lado da despesa, sem as quais é impossível reequilibrar de forma sustentável as finanças públicas.
Estamos, em suma, perante uma proposta de Orçamento do Estado decorrente de um trajeto de consolidação orçamental que contestamos.
Contestamos, em primeiro lugar, pelo seu ritmo, que se revelou excessivo e progressivamente mais violento, tornando cada vez mais difícil o próprio cumprimento das metas.
Contestamos, em segundo lugar, porque, ao invés de se ajustar, desde o início, reestruturando-se, como o fez o setor empresarial privado, o Estado transferiu para as empresas e as famílias o ónus do reequilíbrio das finanças públicas, através do aumento da carga fiscal.
Esta opção, que teve resultados dramáticos para a economia portuguesa, implicou que, a poucos meses do fim do programa de ajustamento, o
Governo tenha ainda de pedir novos sacrifícios aos portugueses, adiando a esperança e a restauração de um ambiente de confiança no futuro, indispensável à retoma do investimento, à recuperação económica e à geração de mais emprego.
Deste modo,
a proposta de Orçamento do Estado para 2014 está muito longe de responder, de forma satisfatória, ao grande desafio que se apresenta ao Governo no próximo ano: conciliar o reequilíbrio das finanças públicas e o fomento do crescimento económico.
Em primeiro lugar, porque insiste num esforço violento de consolidação orçamental. Temo, por isso, que o efeito cumulativo de todas as medidas de austeridade dela constantes deprima ainda mais a procura interna em 2014, prejudicando a confirmação e o reforço dos sinais ainda tímidos de recuperação da economia e do emprego recentemente registados.
Em segundo lugar, porque as medidas de fomento ao crescimento económico são ainda insuficientes.
Em terceiro lugar, embora o esforço de consolidação orçamental recaia fundamentalmente na redução da despesa pública, constam desta proposta medidas tendentes a aumentar ainda mais a tributação.
Embora de caráter pontual ou específico, estas medidas não deixarão de afetar, direta ou indiretamente, a competitividade das empresas e o rendimento disponível das famílias.
Finalmente,
a redução da despesa pública a que o
Governo se propõe com esta proposta de Orçamento do Estado
advém de medidas desenquadradas de uma estratégia coerente que tenha por base a redefinição do papel do Estado na economia e a forma como se deve organizar para desempenhar esse papel de forma eficiente e eficaz.
Minhas Senhoras e meus Senhores,
Permitam-me que aprofunde um pouco estes aspetos.
Em relação ao primeiro, começam, de facto, a surgir alguns indicadores positivos na economia portuguesa.
São resultados que nos dão alguma esperança de que a retoma é possível, mas serão facilmente reversíveis, sobretudo se insistirmos num ritmo de consolidação violento.
Teremos que esperar mais alguns meses para verificar se se trata de um percurso acidental ou se será uma tendência.
Os próximos meses o dirão.
É que, na verdade, há que aguardar pelo efeito de medidas de austeridade num montante de 2,3% do PIB sobre o rendimento disponível das famílias. Mais do que aguardar, há que estar preparado para isso. Qual será o impacto na procura interna?
Do ponto de vista das empresas, não tenho dúvidas em afirmar que o principal impacto deste Orçamento vem das pressões recessivas adicionais que provoca na procura interna.
O segundo aspeto que gostaria de abordar é o do estímulo ao crescimento.
Embora formalmente autónoma da proposta de Orçamento do Estado, a reforma do IRC é a principal medida de política orçamental de estímulo ao crescimento económico que o Governo se propõe levar a cabo.
Como já tive oportunidade de afirmar, esta reforma constitui um primeiro passo muito importante para tornar o sistema fiscal português mais competitivo, mais previsível e mais simples. Estes objetivos são fundamentais para criar condições favoráveis ao relançamento do investimento, à recuperação da economia e à geração de mais emprego.
Só assim poderá ter um impacto significativo na economia.
A fiscalidade tem que ser estável e, tanto quanto possível, previsível. Ou, por outras palavras, as empresas não podem estar sujeitas a alterações fiscais imprevistas que prejudiquem ou até que possam comprometer a viabilidade e a sustentabilidade dos seus projetos de investimento e de crescimento.
Para além da redução progressiva das taxas do imposto, de acordo com um calendário pré-estabelecido, vários elementos desta reforma concorrem para a maior competitividade fiscal.
Destacaria, a este respeito:
- o regime de eliminação da dupla tributação económica de cariz universal;
- o alargamento do período de reporte dos prejuízos fiscais;
- a dedução fiscal dos custos com a aquisição de intangíveis não amortizáveis;
- a possibilidade de reembolso da parte do pagamento especial por conta que não possa ser deduzida no período de tributação a que respeita, eliminando-se os atuais requisitos muito limitativos.
Realço também como muito positiva a introdução, na proposta de Orçamento do Estado, de um regime de dedução dos lucros retidos e reinvestidos, de molde a estimular o auto-financiamento do investimento empresarial e a fomentar o reinvestimento em Portugal em detrimento da distribuição de dividendos.
Embora de aplicação ainda bastante limitada, corresponde à concretização de uma proposta há muito tempo defendida pela
CIP.
No que se refere ao objetivo da simplificação, destaco a criação de um regime simplificado de tributação, de natureza opcional, aplicável às pequenas empresas.
Realço também todas as alterações no sentido da redução da litigiosidade e da simplificação das obrigações acessórias.
Pela negativa, não posso deixar de expressar o meu desacordo no que respeita à proposta relativa à dedutibilidade dos gastos de financiamento.
O agravamento dos limites introduzidos pelo
OE de 2013 à dedução dos encargos financeiros incide sobre as empresas que se encontram já debilitadas por força de elevados níveis de endividamento. São estas empresas que necessitam urgentemente de medidas destinadas a facilitar a sua recapitalização, mas nunca de aumentos de tributação que agravem a sua já difícil situação.
Ao invés de penalizar estas empresas, seriam apropriados instrumentos que favorecessem a entrada de capitais próprios, corrigindo o enviesamento existente a favor do capital alheio.
Um outro ponto negativo é o agravamento do pagamento especial por conta para as empresas que não forem abrangidas pelo regime simplificado, com a justificação de tornar este regime mais atrativo. Não me parece que esta justificação faça sentido, até porque vem afetar empresas que não poderão optar por aquele regime.
Não querendo desvalorizar o que de positivo há nesta reforma do IRC – e há muitos aspetos positivos -, as medidas de fomento ao crescimento económico são ainda, como disse, insuficientes.
Este é um Orçamento em que o foco continua a ser o das finanças e não o da economia, esquecendo que o reequilíbrio duradouro das finanças só pode ser alcançado pelo restabelecimento de uma economia saudável.
Este é um Orçamento que continua a olhar para a sociedade como fonte de mais receitas fiscais, como beneficiária de elevados encargos sociais e não como destinatária de políticas que permitam libertar e mobilizar a capacidade de geração de mais riqueza e mais emprego.
Continuam a faltar, entre outros aspetos, medidas eficazes com vista a estimular a recapitalização das empresas.
Temos que resolver o problema do financiamento da economia, condição indispensável para a retoma.
O Estado tem, a este nível, uma primeira responsabilidade: a de liquidar os seus pagamentos às empresas a tempo e horas e encontrar mecanismos que permitam a regularização das dívidas a fornecedores por parte dos hospitais, autarquias locais e regiões autónomas.
Quanto ao financiamento bancário, de uma restrição financeira, teremos passado agora a uma questão de perceção de risco.
No entanto, o acesso ao crédito continua vedado a muitas empresas, em particular às PME, e as taxas de juro permanecem em níveis proibitivos, penalizando a competitividade relativamente às empresas do centro da Europa.
O
stock de
crédito bancário concedido às empresas portuguesas em Agosto deste ano era 15% inferior ao de Abril de 2011, quando Portugal solicitou a assistência financeira à
União Europeia.
Relativamente às taxas de juro sobre novas operações de empréstimos concedidos pela banca às sociedades não financeiras, a média estava, em Agosto, em 6,4%.
Reconheço que a banca privada se orienta por princípios de risco e de rentabilidade, próprias do mercado.
Mas a avaliação de risco por parte da Banca é afetada pelo facto de a generalidade das empresas, especialmente as PME, apresentarem níveis muito baixos de capitalização, com rácios de autonomia financeira abaixo da média europeia, e demonstrando excessiva dependência de crédito bancário de curto prazo.
Aumentar os níveis de capitais permanentes das empresas facilitaria o acesso ao crédito em melhores condições de pricing e prazos de reembolso.
Por isso, tenho defendido a urgência de medidas que fomentem a recapitalização das empresas.
Essas medidas continuam ausentes desta proposta de Orçamento do Estado.
Outra lacuna diz respeito à revisão do regime fiscal aplicável às operações de capital de risco, já prometida pelo Governo, mas que tarda a concretizar-se.
Minhas Senhoras e meus Senhores,
Em 2014, o esforço de consolidação orçamental recai fundamentalmente na redução da despesa pública.
Além disso, constam desta proposta medidas tendentes a aumentar ainda mais a tributação.
Serão, como disse, medidas de caráter pontual ou específico.
No caso da contribuição sobre o setor energético, terá havido a preocupação de evitar a sua repercussão nos preços, mas, no seu conjunto, estas medidas não deixarão de afetar, direta ou indiretamente, a competitividade das empresas e o rendimento disponível das famílias.
Pela sua gravidade, destaco aqui a que me parece a mais negativa: o agravamento da tributação autónoma em sede de IRC sobre os encargos com viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, usadas diariamente em inúmeros sectores de atividade.
O aumento das taxas é de 10% a 20%, consoante o valor de aquisição do automóvel, para 15% a 35%. Para as empresas com prejuízo, há um agravamento de 10 pontos percentuais (o mesmo que em 2013). Uma empresa que tenha uma viatura de 22 mil euros suportará um aumento de 175% face ao valor que terá de desembolsar este ano.
Contudo, a medida vai muito além deste objetivo. Mais do que um desincentivo a uma determinada prática, que poderia ser atingido por outras formas, constitui uma penalização fortíssima e generalizada, que atinge empresas que não atribuem carros de serviço para uso pessoal mas possuem frotas automóveis para a sua atividade, nomeadamente na área comercial.
Trata-se de uma penalização que contraria o princípio constitucional de tributação com base no rendimento real, uma penalização que pesará fortemente nas contas das empresas. Em suma, uma penalização que não podemos admitir.
O quarto e último aspeto que referi é o da falta de enquadramento do esforço de redução da despesa pública numa estratégia coerente de reforma do Estado.
A este respeito, o documento “
Um Estado Melhor”, agora em debate público, vale sobretudo pelo compromisso em torno de uma série de orientações e bons princípios de governação, com vista a atingir dois grandes objetivos: reduzir estruturalmente a despesa para suportar a moderação da carga fiscal e reduzir a burocracia. Mas está ainda longe de constituir um plano de ação para uma verdadeira reforma do Estado.
A
CIP assume todas as responsabilidades que a sua natureza de parceiro social lhe impõe, e afirmou já a sua disponibilidade para participar no debate para o qual foi convocada.
A intervenção da
CIP neste debate pretende constituir um contributo para que medidas essenciais à simplificação administrativa, burocrática e legislativa sejam adotadas tão cedo quanto possível.
Trata-se de medidas fundamentais para a melhoria do ambiente de negócios, que seja gerador de confiança, que estimule o investimento, a produção de riqueza e a manutenção e criação de emprego.
A procura de consensos para levar a cabo a reforma do Estado é fundamental, mas não pode servir de justificação para o adiamento de reformas que surgem nas intenções de sucessivos Governos, merecem concordância generalizada, mas que, por inércia ou inépcia, continuam a não chegar ao terreno ou tardam em ser plenamente concretizadas.
Minhas Senhoras e meus Senhores,
Um Orçamento do Estado com uma visão de futuro teria de ser outro que não este.
Seria um Orçamento decorrente de uma trajetória de consolidação orçamental inteligente e de estímulo ao crescimento económico, trajetória essa que não foi seguida.
Seria um Orçamento enquadrado numa estratégia coerente que tivesse por base a redefinição do papel do Estado na economia e da forma como se deve organizar para desempenhar esse papel de forma eficiente e eficaz.
Este é, quando muito, um Orçamento que, condicionado por um programa de ajustamento mal desenhado e deficientemente executado, visa o cumprimento, a todo o custo, de metas para encerrarmos com sucesso o programa de ajustamento.
Mesmo assim, corre o risco de não atingir este objetivo.
O sucesso do programa de ajustamento, objetivo que partilhamos, significa restaurar a confiança dos mercados internacionais relativamente à nossa solvabilidade, o que implica confiança em que a economia terá retomado um caminho de crescimento sustentado e equilibrado, no seio da zona do euro.
Este objetivo não está garantido.
Resta esperar que os riscos que apontei, e ainda os riscos político-institucionais que poderão piorar mais a situação, não se concretizem. Incluindo os de um chumbo do
Tribunal Constitucional.
A resiliência de que as empresas portuguesas têm dado provas, seja na exportação, seja, mais recentemente, na criação de emprego, têm surpreendido todos e superado as previsões.
Continuemos pois a defrontar a adversidade com “engenho e arte”, surpreendendo-nos a nós próprios. É essa a esperança que podemos e devemos alimentar.
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