
por Manuel Lema Santos (Este texto representa apenas o ponto de vista do autor, não da PASC – Casa da Cidadania, nem das Associações que a compõem).
Quando, há dias atrás, deparei na caixa de correio com o texto “O Perigo da história única”,da conferencista Chimamanda Adichie, nigeriana de nacionalidade, não satisfeito com uma primeira leitura transversal menos atenta, voltei a ler, reli novamente e repeti ainda uma última vez.
Fixando-me apenas na analogia, vou deixar de lado quer o tema visado que a conferencista aborda de forma tão simples como acutilante, quer a forma e espírito com que o fez. Confinar-me-ei a uma marcada identificação com a ali tão bem reafirmada aversão cultural à construção estereotipada de modelos de uma única história.
Uma única história, repetida e divulgada sistematicamente sempre da mesma forma, retira a possibilidade de lhe acrescentar outras mais-valias, suportadas num contraditório dinâmico de uma possível segunda versão que complete uma história que se deseja de consenso alargado, suportada por testemunhos de factos e acontecimentos dos que a viveram e nela participaram.
Mas afinal que tem a ver este meu deambular sobre o perigo de uma única história com Reserva Naval vs AORN? A Reserva Naval compreende um universo constituído por uma classe de oficiais que pertenceram à Marinha de Guerra Portuguesa naquela qualidade e a AORN – Associação dos Oficiais da Reserva Naval foi e será apenas uma associação constituída por sócios que terão sido ou não oficiais da Reserva Naval e que, de acordo com os estatutos, a ela tenham aderido mediante o pagamento de uma quotização.
Pode afirmar-se com propriedade que houve 3.598 oficiais da Reserva Naval da Marinha de Guerra. Entre 1958 e 1975 a Escola Naval formou 1.712 oficiais em 25 cursos das mais variadas classes. Entre 1976 e 1992 esse número foi acrescentado de mais 1.886 novos oficiais, correspondentes a 943 cadetes integrados em 41 cursos realizados da Escola Naval e a outros tantos 943 cadetes, em 37 cursos levados a cabo na Escola de Fuzileiros.
Dos 1.712 oficiais dos primeiros 25 cursos, cerca de 50% terão sido mobilizados para as mais diversas funções e missões na então Guerra do Ultramar, nos teatros de Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde e S. Tomé e Principe. Como notas curiosas, em Macau também prestou serviço um oficial e até mesmo em Timor desempenharam missões outros 2 oficiais da Reserva Naval.
Foram missões e serviços de complexidade variável, alguns deles de elevado risco, onde tiveram cabimento comandos e outras missões em unidades navais ou de fuzileiros, desde simples missões de fiscalização e patrulha até ao combate, em transportes, apoios e escoltas, ou ainda unidades em terra e outros serviços, ombreando com oficiais dos Quadros Permanentes e dos outros Ramos das Forças Armadas.
A AORN é a única associação existente que, desde 1995, ano da sua fundação, representa aquele conjunto de oficiais, enquanto sócios. No decorrer do tempo de vida da associação, têm sido diversos os avisos à navegação, relativos a um percurso que parece estar a revelar-se escasso na prossecução dos princípios estatutários por que se deveria reger a colectividade e os objectivos a atingir.
Poderá a história da Reserva Naval da Marinha de Guerra Portuguesa e dos seus 3.598 oficiais que por ela desfilaram vir um dia a ser devidamente salvaguardada, no espaço e no tempo, por espólios diversos constituídos por documentos, imagens, relatos e testemunhos, deixados à guarda da AORN – Associação dos Oficiais da Reserva Naval, na qualidade de sua fiel depositária?
Terá a AORN – Associação dos Oficiais da Reserva Naval ganho a confiança da Instituição Marinha e de um conjunto significativo de antigos oficiais da Reserva Naval, sócios e outros associados, para que lhe venha a ser conferido o pleno direito de exercer essa qualidade de representante única e fiel depositária de tão importante memória histórica?
Pessoalmente, julgo que não! Parece-me razoável que pairem muitas dúvidas por esclarecer. O inexorável relógio do tempo, estreitando cada vez mais o horizonte de sobrevivência da AORN ao último Reserva Naval vivo ditará, ou não, da veracidade desta minha inqualificável profecia de Velho do Restelo.
Assumo que, integrado no conjunto das responsabilidades partilhadas, não terei tido a capacidade, eu próprio, de “levar a carta a Garcia” enquanto sócio e colaborador até meados do ano de 2004. Também depois apenas como colaborador externo até ao final do ano transacto, com o espírito Reserva Naval de que me orgulho de estar permanentemente imbuído.
Ter-me-á faltado certamente engenho e arte para debater objectivos e temas com os meus pares ou terei aceite demasiadas vezes a condição de remetido ao silêncio nas reuniões de trabalho e acções em que participei. Foram muitas.
Em qualquer caso, continuarei a ser detentor da inalienável qualidade adquirida de antigo oficial da Reserva Naval da classe de Marinha do 8.º CEORN. Foi um privilégio pessoal e uma mais-valia académica, profissional e humana a que, orgulhosamente, posso acrescentar a invulgar situação de ter sido licenciado no posto de 1.º tenente, em 1972, por efeito do prolongamento voluntário do tempo de serviço prestado na Marinha.
Ao longo destes últimos anos terei ganho motivação suficiente para me manter a rabiscar neste modesto blogue pessoal iniciado em 2006, a título meramente pessoal, farrapos de memórias Reserva Naval, expressando livremente opiniões, publicando relatos, imagens e documentos ou simplesmente divulgando notícias que considerei de interesse cultural.
Para esta dimensão, sem pretensões, ultrapassada a encorajadora fasquia de 300.000 visitas, ainda que no decorrer do tempo o silêncio nos comentários tenha sido maioritariamente ensurdecedor, os aspectos positivos foram suficientes para que mantenha afastada a ideia de desistência.
Existe uma subtil tendência para avaliar de forma grosseira, com leveza e ausência de conhecimento, a disponibilidade, meios necessários e tempo dedicado a pesquisa, recolha, compilação, tratamento e publicação de documentação de memórias históricas. É frequente a classificação do trabalho de quem mete mãos à obra como “efectuado em tempo de lazer” ou ainda como possível “devido à disponibilidade de tempo” de quem o faz.
Em vez de valorizar, motivando quem constrói, subalterniza-se diminuindo a qualidade da construção ou, bem pior, ignorando a construção. Terá o caminho percorrido desde 1997 sido feito no respeito por instituições e pessoas? Certamente que houve da minha parte esse cuidado que procurarei continuar a trilhar, mas tal não será impeditivo de manifestar desacordos pontuais sempre que se justificarem.
É tempo de não se correr também o perigo de uma única história da Reserva Naval e o articulado neste texto, sob aquele título, será aqui futuramente abordado com diferentes perspectivas, como que regressando a uma anterior rota, temporariamente abandonada devido a “marés e ventos desfavoráveis”.
Encerro estes comentários com estas reflexões:
A Associação dos Oficiais da Reserva Naval comemorou este ano o seu “20.º aniversário AORN“, optando por abandonar um anterior percurso de vários anos de comemoração do “Dia da Reserva Naval” em que se apelava ao universo de Oficiais Reserva Naval em vez de apenas “Sócios da AORN e convidados”.
O 8.º CEORN que integrou 68 cadetes e a que eu próprio pertenci, foi alistado na Escola Naval em 9 de Outubro de 1965, completando hoje meio século de ingresso na Instituição. Que tipo de preocupação teve a AORN com a possibilidade de chamar a si e/ou apoiar qualquer tipo de encontro/convívio, habitual em cursos Reserva Naval?
A Reserva Naval com génese num projecto de dimensão nacional na casa-mãe Marinha de Guerra Portuguesa completou este ano o 57.º Aniversário;
Porque me parecem invertidos valores e prioridades?
Manuel Lema Santos, 8.º CEORN
1.º TEN RN 1965-72 (licenciado)
Guiné, LFG “Orion” 1966-68
Comando Naval do Continente, 1968-70
EMA, 1970-72.
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